terça-feira, 22 de abril de 2008

Cântico Negro



"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!


José Régio

domingo, 20 de abril de 2008

O Princípio de Uma Boa Queca

[ainda não tenho esta em mp3, para ouvir é favor visitar http://myspace.com/pacotes ]

“Não te preocupes… sou muito boa naquilo que faço”, disse Cátia numa voz dengosa mas segura. Desapertava o fecho das calças do Serginho devagar, firmemente, enquanto o olhar dele não descolava das últimas quatro linhas de coca que pemaneciam intactas no cd de DAFT PUNK em cima da mesa da sala, a menos de um metro de distância. Quando não tinha pachorra para aquecer um prato, Serginho escolhia os cds para dar riscos baseando-se numa série de critérios: cor escura, música boa – vá-se lá saber porquê, mas a puta da branca dava-lhe para isso – e um título apropriado para a ocasião. “Discovery” tinha-lhe parecido ser a escolha ideal naquela madrugada. As ideias atropelavam-se no raciocínio acelerado: “podia dar só mais um cheiro, merda, apetece-me, mesmo mesmo. Mas pode cortar-me a tusa, quando é demais a coca também pode dar para isso, também, e até que tou fixe, tou fixe, tou mesmo fixe, um bom broche é quase sempre o princípio de uma excelente queca, sabe Deus há quanto tempo não dou uma de jeito, pelo menos de que lembre, ela diz que é boa naquilo que faz e quem sou eu para duvidar? Relaxa e aproveita”, pensou. Deu um golo que matou o que restava da Heineken que tinha numa mão, enquanto afagava os cabelos da Cátia com a outra. Definitivamente, ela era boa naquilo que fazia. Brincou um pouco com a lingua na cabeça da picha e depois deixou-a deslizar suavemente por inteiro para dentro da sua boca húmida, de uma só vez. A expressão “foder-te a boca toda” materializava-se da maneira menos provável, mas, imediatamente a seguir, sacou-a de forma quase brusca. Serginho soltou um gemido misto de dor e surpresa: ela pôs o indicador nos lábios e sussurrou “shhhhhhhh”… voltou à carga, começando a lamber os tomates. Pretendia levar o seu tempo. Ao lado do cd, um dos telemóveis que estavam em cima mesa vibrou, o que lhe fez voltar a pensar na branca. Se desse um risco, o mais certo era dar o resto numa questão de minutos, mas ainda deviam ser umas quatro da manhã, o que significava que pelo menos dois dos seus dealers deveriam estar na ronda, e bastava um sms para para um deles passar lá por casa. “Não, mano, vai ser um desperdício de tempo e dinheiro, é sempre a mesma merda, daqui já não passas, já vais na segunda grama, não é que ainda vás curtir muito mais, e ainda te arriscas a ficar pelas entradas”. Cátia chupava agora a sua picha dura ritmadamente, nem muito devagar nem demasiado rápido, salivando apenas o suficientemente necessário para tornar a sua boca um receptáculo húmido, quente, confortável, alternando apenas com pequenas mordidelas ao mesmo tempo em que o observava com o seu melhor olhar de colegial reguila. Este poderia ser de facto o princípio de uma excelente foda. O telemóvel voltou a vibrar. Serginho desconcentrou-se e veio-se dentro da boca dela sem o prever. Antes de dizer qualquer coisa que fosse, levantou-se do sofá, deu dois riscos de seguida e pegou no telemóvel: “Onde andas?”, escreveu para dois números. Posou o telefone e estendeu a palhinha a Cátia. “Dás uma linha?” Cátia esboçou uma tentaviva de sorriso, acendeu um cigarro e acenou afirmativamente: “Sim, apetecia-me uma coisa boa, agora.”


Carlos Nobre aka Pac(otes)
O Algodão Não Engana [2008]

terça-feira, 1 de abril de 2008

Mundos Mudos



Ligo directo para a caixa de correio só para ouvir a tua voz,
Sei que é cena fora mas todo o dia chega aquela hora em que
o lado esquerdo chora quando se lembra de nós
A vida corre tranquila, cada vez menos reguila
meto guita de parte e a cabeça não vacila tanto
Para minha alegria e meu espanto
Pode ser que o passado fique por onde deve estar:
No pretérito imperfeito, já que não é mais-que-perfeito,
Este é um presente que eu aceito
Para atingir a tranquilidade
Que supostamente se atinge com a nossa idade
A verdade é que a saudade do que passou
Não é mais que muita...

Mas por muita força que faça ela passa por saber que te vivi...
Tu deste tudo e eu joguei, arrisquei e perdi

Muda o teu número, eu mudei o meu,
Muda o teu número, eu mudei o meu,
Muda o teu número, eu mudei o meu,
Muda o teu Mundo, eu mudei o meu.

Cada vez que eu ligo eu tento deixar mensagem
mas acabo por nunca arranjar a coragem
Necessária
Gostava apenas de poder partilhar o meu quotidiano habitual
Nada que se compare com as correrias
doutras alturas e doutros abismos
E já que falo por eufemismos
Gostava de dizer que ainda gosto bastante de ti...
A casa tá diferente, (já) parece digna de gente
Dá gosto sentar no sofá com a tv pela frente
Comprei uma máquina de café
Xpto, bem bonita, azul bebé
Ocasionalmente cozinho e bebo o meu vinho
E esqueço o fumo que nos dava aquele quentinho
Hoje em dia é mais à base do ar condicionado
Condicionei a tentação num clima controlado
Quero que saibas que tou bem, sei que tu mais ou menos
Sempre gostaste de brincar em perigosos terrenos
Em relação a isso eu não sei o que fazer
E se calhar é por isso que acabo por não dizer que
a verdade é que a saudade do que passou
Não é mais que muita...

Mas por muita força que faça ela passa por saber que te vivi...
Tu deste tudo e eu joguei, arrisquei e perdi

Muda o teu número, eu mudei o meu,
Muda o teu número, eu mudei o meu,
Muda o teu número, eu mudei o meu,
Muda o teu Mundo, eu mudei o meu.


Carlos Nobre
Amor, Escárnio e Maldizer